Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

domingo, 30 de agosto de 2015

Pois é, Clóvis...


Marildes chegou cedo à praça da Estação para mais um dia de trabalho duro, lavando os carros já combinados para aquela quarta- feira. Clóvis continuava sumido, e ela estava achando aquilo estranho. Desde os tempos em que estavam juntos, ele nunca deixou de voltar para casa, ainda que muito tarde.

É verdade que abusaram da cachaça na noite de anteontem, ainda na praça. Tomaram mais de litro e ele ficou meio loucão, como nunca ela havia visto. Ele foi ao banheiro da estação e não voltou mais. Depois de procurar por todo canto, Marildes foi sozinha para o barraco onde moravam, não muito longe, na beira do metrô. Caminhou devagar, pois ainda sentia uma dor forte nas costas.

Naquela manhã, estava tirando os tapetes de um carro, quando chegou o cara de cara estranha, falando que era detetive. Marildes limpou as mãos no pano sujo, olhando para ele sem olhar nos olhos. O policial queria saber se ela conhecia um homem alto, de bigode, que costumava ser visto por ali e usava blusão vermelho e encardido, com zíper no meio.

Ela logo viu o Clóvis dentro do blusão e disse, sem entender nada:

-- Se for o Clóvis, a gente tá vivendo junto. Deve ter uns seis mês.

-- Será que você pode vir comigo? Preciso de alguém que possa... saber quem ele é.

-- Mas o Clóvis tá sumido desde segunda, não sei por onde anda. Cê quer que eu vô onde?

O detetive da Civil preferiu não explicar muito. No caminho, ela perguntou se iam para algum hospital.

-- Não, a gente está indo em outro lugar; chama IML.

Marildes continuava sem entender, mas queria mesmo encontrar Clóvis. A viatura de polícia fez a curva à esquerda, saiu da avenida grande que ela não conhecia e pegou uma subida forte.

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No dia em que ela chegou na rodoviária, vindo dos lados de Montes Claros, não sabia para onde ir. Foi andando, com as sacolas de roupa, até achar a estação de trem, onde homens e mulheres lavavam carros.

Por algum motivo, achou que devia ficar por ali. Tudo na cidade corria muito, e ela estava com medo de ficar sozinha no meio da confusão.

Na hora do almoço, já estava de conversa com o pessoal. Muitos olhavam seu corpo jovem de cima a baixo. Marildes era bonita, ainda que maltratada pela vida dura da roça, onde trabalhava a mando do padrasto, de domingo a domingo. Desde que a mãe levou ele para casa, as duas eram muito maltratadas.

Para piorar, nos últimos tempos, começou a querer dormir com ela, roçando aquela barriga nojenta em suas costas à noite. Custou a contar aquilo para a mãe. E tomou um susto quando sua mãe disse, com a voz baixa, que era melhor ela aceitar. Ela não conseguiu evitar a pergunta:

-- Mas, por que, mãe?

Com a mente calejada, a mãe explicou:

-- Sabe por que, milha filha? Porque a vida é assim.

Na noite seguinte, Marildes foi embora sem falar palavra, com um nó na garganta pela mãe que deixava para ser usada sozinha.

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A caminhonete da polícia freou de repente, abrindo as portas. Tudo era muito diferente para ela. Marildes continuava sem saber onde estava. Passou por duas salas, quase sufocada por um cheiro azedo no ar. Ela esfregava uma mão na outra, quando, de repente, sem nenhuma explicação, surgiu, na frente dela, uma mesa de alumínio com um corpo coberto por um lençol. 

Alguém puxou o pano branco todo, e ela sentiu um tranco forte no peito e uma estremecida nas costas que ainda doíam. Já tinha visto ele nu, mas não daquele jeito, com gente tão perto e uma costura grosseira que ia do peito à barriga.

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Naquele momento, alguma coisa começou a acontecer na cabeça de Marildes. Ela não sabia o que era, mas sentiu uma força por dentro. Mesmo naquele lugar tão estranho, teve a sensação de algo bom, diferente do medo de ficar sozinha.

Ela olhou para o rosto de Clóvis e se lembrou dele sorrindo para ela na estação, no dia em ela chegou por lá. Foi o primeiro a se aproximar e conversar, com um sorriso amigo. Ele mostrou toda a estação para ela. Mais tarde, disse que ela podia ajudá-lo a lavar os carros. Não era difícil aprender.

No final do dia, Clóvis falou a Marildes que, se ela quisesse, poderia passar a noite no barraco dele, sem problemas. O sofá era pequeno, mas dava para dormir. Já em casa, ele emprestou uma tolha de banho e não ficou tentando olhar pela fresta da porta do banheiro, que não fechava bem.

Depois, tudo foi muito rápido. Ainda que, ao mesmo tempo, sem pressa ou afoiteza. Duas noites depois, o sofá ficou vazio à noite. E ela não cabia em si pensando como era bom poder dormir com o homem com quem ela queria dormir.

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Os dias foram passando entre a praça da Estação e carros lavados. No início, ela não queria tomar cachaça, mas aos poucos foi aceitando. Ele chegava a empurrar o copo para ela, insistindo e falando alto, de um jeito que ela nunca tinha ouvido. A cada dia, tudo foi piorando. Muito.

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Ao lado do detetive e um ajudante, Marildes olhou firme para aquele corpo nu. Estava pensativa, como nunca estivera, desde quando saiu de casa. O policial, com uma ficha na mão, perguntou se ela reconhecia o corpo e qual era o nome e a idade dele.

Num ato inesperado, Marildes indagou:

-- Posso falar com ele...?

O policial olhou para o ajudante, que olhou para ele. Tentaram explicar alguma coisa, mas Marildes estava decidida e insistiu.

O detetive achou que seria mais rápido deixar como estava. Fez que sim com a cabeça e os dois homens se afastaram, num sinal raro de respeito por ali. 

Ela chegou bem perto do corpo, o primeiro que ela conhecera. Sem se encostar nele, começou a falar, sem pressa.

-- Pois é, Clóvis, queria só te perguntar uma coisa, cê vai responder só se quiser, eu cheguei do interior e a gente ficou junto, e era bom, cê era um cara legal comigo, e muito carinhoso, no início era tão bom, cê não faz ideia do quanto era bom, pois eu me sentia alguém, pela primeira vez na vida... eu nem precisava falar isso com você, pois achava que sentia o mesmo... Por que, Clóvis?

Em volta dela, um profundo silêncio era sustentado ao fundo pelo ronco dos motores das geladeiras imensas, cheias de corpos com os quais não adiantava falar mais nada.

-- Pois é, Clóvis, de repente cê começa a beber muito, a falar alto comigo, a ficar sem paciência por nada. Lembra o dia que deixei o arroz queimar um pouquinho? E então, Clóvis, cê foi indo me bater, e batia cada vez mais forte... não sei se você agora ainda sabe, Clóvis, mas os socos nas costas  eram os que mais doíam.

Clóvis insistia em continuar em silêncio, desnudo, com os olhos um pouco abertos, perdido em um ponto qualquer do teto branco e carcomido.

-- Mas soco nas costas, Clóvis, só não era pior que tapas no rosto. Porque, Clóvis, tapa no rosto dói mais é por dentro. Cê não imagina o quanto...

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O detetive e o ajudante foram chegando perto, como fazem os guardas de prisão, sinalizando o fim da visita. Ela percebeu que a conversa tinha de terminar. Então, perguntou a ele, pela última vez:

-- Por que, Clóvis...?

Enquanto esperava a resposta que nunca ouviria, a última frase que escutou da mãe retumbou em seus ouvidos:

-- Sabe por que, milha filha? Porque a vida é assim.

Marildes foi se afastando aos poucos daquele corpo estranho, com a sensação de alívio que começou a sentir depois que chegou ali.

O detetive deu por encerrada a sessão e perguntou de novo, com a prancheta e a caneta na mão, com pressa de completar a ficha:

-- Você pode dizer o nome completo e a idade aproximada dele?

Marildes nunca tinha escutado palavras como dignidade e empoderamento, mas começava a descobrir, como mulher, o sentido delas. Era dali que vinha a sensação boa que começou a sentir por dentro, quando entrou naquele lugar.

Com a voz firme, doída, mas decidida, ela respondeu ao detetive, agora olhando nos olhos dele, e arrancando das costas a angústia que causava tanta dor:

-- Conheço ele não. Não sei quem é. Nem mesmo o primeiro nome.

Marildes virou de costas para a mesa de alumínio, deixando para trás o corpo indigente e sem força nos braços covardes. Para compensar tamanha violência em vida, negou a ele o direito a alguma dignidade na morte.


Ela nunca havia entrado antes naquele lugar horroroso, tão parecido com o seu passado. Mas tinha a certeza de que, agora, sabia qual era a porta da saída.

3 comentários:

  1. Que texto maravilhoso! Me lembrei das suas histórias nas aulas de jornalismo econômico. Ah que saudade, grande mestre!

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    1. Querida, muito obrigado pelas palavras carinhosas! E saudades também de nossas aulas!

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  2. Estou cada vez mais impressionada com a força da sua narrativa.

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