Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

sábado, 19 de setembro de 2015

É preciso saber viver

Sábado, seis da tarde. Hora de fechar o salão. Ia ser mais um fim de semana como os outros. Cada uma delas iria para sua casa – para cuidar do marido e dos filhos.

Mas não foi.

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Maria das Graças, a dona do salão, não tinha pressa de ir embora, apesar de morar quase ao lado. O marido fora ao Mineirão com os amigos ver o “galão” jogar e só chegaria bem tarde. Resolveu chamar as “meninas” – as três manicures que trabalhavam com ela – para uma cerveja.

Karina topou. O marido fora pescar com os amigos e só voltaria à noite. Stefânia também. Estava livre. O marido avisou que iria levar o carro ao lava-jato do amigo, onde ficariam tomando cerveja. Ingride sabia que o marido estava em casa, mas apagado, como acontecia sempre aos sábados, depois da feijoada na casa da mãe.

As três eram mais ou menos vizinhas, e uma foi indicando a outra para o salão. Era para ser tipo bico de final de semana, mas acabou que estavam trabalhando só lá.

Karina teve uma filha aos dezesseis anos e veio com ela para Belo Horizonte, onde conheceu o marido. Ingride ficou viúva antes mesmo de casar, aos 21 anos, quando o noivo foi morto pela polícia. Estava casada agora há quatro anos e lutava muito para manter a casa e o marido alcoólatra. Stefânia foi morar com um dos irmãos gêmeos, que a abandonou – e ela acabou se juntando com o outro gêmeo.

Todas elas eram muito jovens, mas tinham um rastro de tristeza precoce no fundo do olhar. Das Graças sentia isso e estava sempre tentando jogar as meninas “para cima”.

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Naquele final de tarde, em vez de ir ao bar ao lado, elas resolveram trazer cerveja e tira-gosto para o salão. De repente, sentiram uma alegria não planejada. Riam e arrumaram a mesa de bar improvisada.

Foi quando Das Graças falou:

-- Meninas, ontem ouvi no rádio uma propaganda – acho que de um plano de saúde –, que começava com uma pergunta assim: o que te faz querer viver? Sabe, essa frase ficou na minha cabeça e eu queria fazer a mesma pergunta pra vocês.

As meninas foram pegas meio de surpresa, mas já estavam animadas pela cerveja. No bar ao lado, alguém ligou a jukebox no último volume, escolhendo um pout pourri com os maiores sucessos do Rei Roberto.

 Elas ficaram meio em silêncio, pensando na pergunta. Ingride foi a primeira a falar, sentada meio de lado, com as pernas cruzadas, na cadeira branca de cortar cabelo, deixando as sandálias de dedo no chão.

--Então, eu achava que o que me faria querer ser feliz... seria poder ouvir sempre uma declaração de amor, muito linda, do meu maridão. Mas isso não tem acontecido...

-- Ah, mas você tá querendo muito!, brincou uma das amigas

Do bar ao lado, vinha a voz do Roberto.

... eu tenho tanto, para lhe falar, mas com palavras, não sei dizer... 

-- Caramba, mas ele não fala mais nada de bonito, argumentou Ingride.

...como é grande, o meu amor, por você... 

Karina já estava no segundo copo de cerveja e entrou na conversa.

-- Olha só, eu não sou muito vivida, mas o que tinha vontade mesmo... Como é a pergunta? O que me faria querer viver? Ah, era ter meu maridão só para mim, deitar com ele e morrer de amor... mas ele não quer mais saber disso, entende...?

... vou cavalgar por toda noite, por uma estrada colorida, usar meus beijos como açoite, e a minha mão mais atrevida... 

-- Queria que fosse para sempre como era no começo... ele com aqueles braços fortes e a mão pegadora, revelava ela.

... vou me agarrar aos seus cabelos, pra não cair do seu galope, vou atender aos meus apelos, antes que o dia nos sufoque... 

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Aos poucos, a noite ia chegando no bairro. Em cada casa, pais, mães, filhos e avós iam e vinha, entrando pelos becos, voltando da padaria. Como acontecia há muitos anos, com os pais dos pais, e os avós dos netos. Na TV, passava a novela das seis, com a eterna história impossível de uma paixão ardente.

Das Graças foi à geladeirinha do salão e pegou mais cerveja para todas.

-- E você, Stefaninha? Fala pra gente. O que te faz querer viver, menina?

-- Ah, Das Graças, sei de mais nada não... respondeu a moça. Tenho passado por muitas dificuldades, com falta de dinheiro, de sonho na vida. Não sei como... não tenho em que acreditar...

A voz do Roberto entrava por todos os lados.

... toda pedra no caminho, você deve retirar, numa flor que tem espinhos, você pode se arranhar... 

-- Pois outro dia a gente tava sozinho em casa, virei pra ele e lasquei um beijo e uma declaração de amor no cangote dele...

... você foi o maior dos meus sonhos, você é a saudade que eu gosto de ter... 

-- E eu ia falando e ele ia me apertando a bunda... mas parecia... era uma coisa estranha, só eu falando...

... vou me agarrar aos seus cabelos, pra não cair do seu galope... 

-- Engraçado, ele parecia que não me via, só sentia meus peitos, forçava minhas pernas... falta aquele... algo mais, sei lá, tipo...não sei dizer...

... e na grandeza desse instante, o amor cavalga sem saber... 

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As meninas foram tomando cerveja, aproveitando o tira-gosto e ficando cada vez mais à vontade naquele salão que conheciam tanto. Elas iam ficando mais soltas, como poucas vezes tinham ficado em casa ou no trabalho. Compartilhavam uma sensação boa e inédita de cumplicidade.

-- Pois eu não... eu não sei se quero...

... estrelas mudam de lugar, chegam mais perto só pra ver... 

Ingride já estava enrolando a língua, mas queria muito conversar com as amigas.

-- Sabe, gente, às vezes eu falo para ele. Eu sinto ele tão perto de mim, e sei, sei muito bem que vou continuar a amá-lo...

... por toda a minha vida... 

Karina foi ao banheiro e voltou falando do tempo que foi mãe solteira e que tanto queria alguém do seu lado, um companheiro de verdade... ela sempre pensou que iria achar o seu “carinha”... Sem querer, estava começando a chorar, meio de tristeza, meio de alegria pelas amigas.

... tanto tempo longe de você, quero ao menos lhe falar, a distância não vai impedir, meu amor, de lhe encontrar... 

Das Graças também estava com o nó na garganta. Não queria falar, mas as histórias das meninas tinham tudo a ver com a dela. Mesmo tendo mais dinheiro e “vencendo na vida” com o salão, sabia que lhe faltava algo. Sua vida parecia boa, mas... só parecia. Todas as amigas falam que ela era bem casada, mas só ela sabia de tudo e de verdade. Mas, bem no fundo, não queria mesmo era ficar sozinha.

... quem espera que a vida, seja feita de ilusão, pode até ficar maluco, ou morrer na solidão... 

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As meninas já estavam todas meio que rindo e meio que chorando. Sentiam-se alegres no choro, como se tudo aquilo fizesse muito bem. Era ruim, mas era bom. Elas revelavam seus segredos com a intimidade que a vida permite só às mulheres que sofrem e sabem o tanto que sofrem. Estavam se abraçando, entre cadeiras, bacias de água, vidros multicoloridos de esmaltes e secadores elétricos. Tudo parecia sem vida, diante da vida que insistia em passar feito caleidoscópio.

Por instantes, ficavam em silêncio. Todas pensavam na pergunta de Das Graças. Não tinham certeza sobre as respostas; só sabiam da força da pergunta, que lhes rasgava o coração:

-- O que te faz querer viver?

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Lá fora, no bar, só havia homens. Eles se divertiam a valer, às gargalhadas, se abraçando feito amantes à moda antiga, daqueles que ainda mandam flores. Não se preocupavam com a vida e nem ouviam a voz do Roberto, que insistia...

... é preciso ter cuidado, pra mais tarde não sofrer... 

No salão, uma das garotas subiu descalça na poltrona, com as unhas dos pés bem pintadas de vermelho. Abriu os braços e gritou:

-- E eeeeentão, garotas...? Querem saber??? Quer saber, Des Graças... Eu, euzinha, não me importo, se nesse instante, sou dominada ou se domino....!!! eu aaaamo vocês, de coração!!!

Era como se Roberto cantasse só para elas.

... se o bem e o mal existem, você pode escolher... 

Ela insistiu:

-- E eeeentão, garotas...? ... é preciso saber viver!

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Das Graças custou a fazer a chave rodar na fechadura, mas trancou bem o salão, deixando o reality show para trás, bem fechado lá dentro. Passava da hora de voltarem para o lar. Ela tinha certeza que não podiam levar nem um pouquinho daquilo tudo para casa.

Afinal, os maridos voltaram, como voltariam sempre, das pescarias, dos lava-jatos e dos estádios de futebol; acordaram das bebedeiras, com aquela vontade de transar.

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As quatro mulheres foram caminhando juntas pela rua afora. Logo iam chegar em casa, como chegariam sempre. Nem ouviam mais a voz do Roberto, que parecia já saber de tudo:

... eu cheguei em frente ao portão, meu cachorro me sorriu latindo, minhas malas coloquei no chão, eu voltei...

domingo, 6 de setembro de 2015

Gildara e o churrasco na laje



Gildara estava vivendo seus dias de quase fama desde que virara personagem de blog. Ela chegou a comentar com as colegas que estava se tornando “a mais visível das invisíveis” no shopping onde trabalhava. Muitos prestavam atenção em seu crachá, para confirmar o nome. Ficou sabendo até de uma leitora que sugeriu um emprego mais bem pago para ela, diante de sua habilidade com cálculos.

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(Se você não conhece a história de Gildara, clique aí ao lado, no link “A invisível que calculava”, antes de continuar essa leitura)
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E Gildara nem estava imaginando voltar ao blog, mas não teve jeito. Na terça-feira, ela viu uma notícia no jornal que a deixou assustada. E com a cabeça a mil por hora, viciada que estava em fazer contas. Segundo uma revista, chamada Forbes Brasil, o homem mais rico do país viu sua fortuna passar de R$ 49,8 bilhões para R$ 83,7 bilhões entre 2014 e 2015. Isso representa um ganho de R$ 92,7 milhões por dia, ou R$ 3,86 milhões por hora, de acordo com a reportagem.

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No último domingo, Gildara chamara os quatro filhos para conversar. Tinha boas notícias. Ela havia conseguido emprego no shopping para a irmã, que estava vindo do interior para morar com eles. Gildara fora promovida a encarregada, e a irmã ficaria com sua vaga. A meninada ouvia a história com sorrisos nos rostos. Desde que o pai sumiu, a vida estava muito difícil. Agora, dizia a mãe, o dinheiro ia continuar apertado, mas ia mais que dobrar, incluindo o salário da irmã.

-- “Será que a gente vai poder fazer aquela viagem pro Rio de Janeiro, para ver os fogos na praia?”, indagou a filhinha menor, com brilho nos olhos.

-- “Vamos com calma, gente! Ainda não sei”, alertou Gildara. “Mas, com certeza, vou poder comprar uns bons livros para vocês, que estão na idade de gostar de ler”.

Sem saber se o dinheiro ia ser muito, o filho mais velho, que já estava namorando, deu seu palpite:

-- “Mãe, a gente pode comemorar fazendo um churrasco na laje, com cerveja e tudo, chamando todo mundo!”

-- “Olha, pessoal, eu quero muito fazer tudo isso com vocês, mas a gente precisa ir fazendo as conta na ponta do lápis. Lembrem o que já combinamos: mesmo com toda a dificuldade, a gente vai tentar de tudo para ter uma casa só nossa. Todinha paga, sem aluguel”.

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Gildara saiu cedo para o trabalho na segunda-feira. Estava tão feliz que se deu o direito de passar uma leve maquiagem. Queria ficar bonita. No ônibus lotado, foi pensando na conversa com os filhos. Era a primeira vez, em muito tempo, que sentia uma coisa boa no peito – e sabia o que era. Uma sensação maravilhosa de... uma coisa do tipo... “estar vencendo na vida”. Mesmo sozinha com os filhos, nunca perdeu a esperança de dar conta de tudo.

Com a bolsa a tiracolo, ela apertou as duas mãos na barra de segurar no ônibus e falou para si mesma, em meio a tanta gente que lutava duro como ela: eu vou conseguir. Eu mereço conseguir. Vamos ter mais um dinheiro, e quero tudo para meus filhos. Livros, viagem, churrasco e tudo o mais. E vamos conseguir entrar no programa do governo para ter nossa casa.

Carros e caminhões passavam apressados pela janela do ônibus, mas Gildara não prestava atenção em nada. Seu coração batia forte e parecia crescer no aperto do busão. Na sua frente, só via os rostinhos sorridente de esperança dos seus filhotes.

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Gildara vinha se acostumando a ler jornal. Aproveitava a hora do almoço para olhar as notícias. Foi quando viu a história do quanto ganhou, em um ano, o homem mais rico do Brasil. Um pensamento lhe causou um sorriso: “Nós dois estamos melhorando de vida. Apesar da crise...”

Aquilo a levou a outra lembrança. Não sabia quem escrevia os jornais e nem como se faziam as reportagens. Mas achava estranho como um tanto de notícias, de uns tempos para cá, começavam assim e depois mostrava outra coisa: Apesar da crise... “Apesar da crise... tem muito mais gente viajando de avião... tem mais escolas e universidades para os jovens pobres... tem mais vacina de graça nos postos de saúde... tem melhores condições de trabalho para as domésticas... tem havido queda na mortalidade infantil... caraca, tem até muito mais médico de graça pelo Brasil no interior do país afora! Quem imaginava que tudo isso ia acontecer um dia?

Ela deixou de lado esse pensamento que a intrigava e prestou atenção na notícia do dia:

“Puta que pariu!”, exclamou, diante do jornal. “O cara tá ganhando quase quatro milhões por hora. Todas as horas, todos os dias. Todos os meses, sem pular nenhum!” Gildara viu que precisaria de uma calculadora. Ia aproveitar os intervalos de lanche para fazer suas contas.

Ela não fazia ideia de quem era “o cara”, mas sentia certa proximidade com ele. É que os dois estavam passando por aquele “algo” em comum – o “apesar da crise”... ainda mais agora, que o supervisor confirmou sua promoção e o emprego da irmã a partir da semana que vem.

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E aquele monte de números ia enchendo o painel da calculadora. Uns chegavam a nem caber no visor... 3.860.000 dividido por 140.000; depois por 50; e então por 40; e também por 3.000...
Por um instante, Gildara se perguntou se “o cara” tinhas filhos. Se tivesse, eles eram também uns sortudos e deveriam estar com os olhinhos brilhando, assim como os dos seus.

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De repente, desligou a calculadora. Estava estarrecida.


Com o dinheiro que “o cara” ganha em apenas uma hora, Gildara descobriu que poderia, sim, fazer um churrasco na laje, mas talvez não iria caber tudo mundo. Imaginou gastar R$ 50 por pessoa. Daria para convidar... 77 mil e 200 pessoas...

Com uma hora do lucro do “cara”, ela, com certeza, iria ver os filhos maravilhados com os fogos da cidade maravilhosa. Mas talvez até se cansassem do programa. Com um pacote de R$ 3 mil, incluindo passagem de avião e hospedagem para os cinco, ela e os filhos poderiam passar 1.286 noites de réveillon em Copacabana...

Ela iria, com certeza, comprar livros para os filhos. Mas, mesmo incluindo toda a meninada da vizinhança no “pacote”, ia sobrar muito livro. Pelas contas, com uma hora da grana do “cara”, seria possível dar um livro novo, de R$ 40 cada, para 96 mil crianças cidade afora...

Ela parecia não acreditar em tudo aquilo.

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Uns tempos atrás, logo quando começou a comprar jornal todos os dias, Gildara viu uma daquelas notícias que não conseguia entender. Punha a culpa em si mesma. “Afinal, eu nunca estudei...”. Numa mesma edição, mas em páginas diferentes, o jornal dizia que o Brasil já era a sétima maior potência econômica do mundo. E que o mesmo Brasil, ao mesmo tempo, estava entre os 20 países com a pior distribuição de renda do mundo. “Por que será que os jornais não juntam essas notícias e explicam isso pra gente?”, indagava.

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Gildara voltou correndo para o trabalho. Tinha muita mesa para limpar na área de alimentação do shopping. Mas já se via sem aquele avental preto que transforma gente em espécie invisível. Ia usar o terninho de encarregada. Mas, antes de encarar o rodo e o pano, terminou a última conta. A que mais queria fazer.

Com um dia de “trabalho” do “cara”, daria para comprar... 661 apartamentos. Isso dava 19.851 em apenas um mês. “Dezenove mil... oitocentos... e cinquenta... e um...”, foi falando devagar, para tentar imaginar o que significava aquilo. E conseguiu: eram quase 20 mil casas próprias, para abrigar 100 mil pessoas,com famílias do tamanho da sua... Ou seja, uma cidade inteira! Em trinta dias de lucro...

Mesmo acostumada a não se assustar facilmente, ela não acreditava no que estava descobrindo, “apesar de” os grandes jornais preferirem não dar aquelas notícias. Mas ela até imaginou a manchete:


Lucro de 30 dias do homem mais rico
do Brasil daria para comprar casa
própria para famílias de 20 mil gildaras


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P.S do blogueiro, que roubou a calculadora da Gildara: se você “gastou” três minutos lendo essa história, saiba que fez um péssimo negócio. O “cara” certamente não leu, mas acaba de ganhar R$ 193 mil enquanto você lia...