Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

sábado, 24 de outubro de 2015

Saudades do futuro

De repente, Eurídice compreendeu tudo. Tudo mesmo.

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Estava de pé diante daquela mulher de uniforme, que lhe oferecia um sorriso bem treinado para aqueles momentos. Suas pernas frágeis fraquejaram, e seu corpo tremia por dentro, prestes a desabar. Seus pequenos olhos tão vívidos se umedeceram rapidamente.

Ela olhava para aquele rosto que insistia em lhe sorrir, mas só conseguia ver cenas de sua vida passando em velocidade por sua mente. Flashes rápidos, mas muito nítidos, vividos ao longo de seus 89 anos.

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Cerca de meio século antes daquele momento, em uma noite muito especial, Eurídice e o marido tiraram da caixa bem guardada as taças coloridas. Iriam fazer um brinde para comemorar a compra da casinha com a qual tanto sonharam. Iam pagar o empréstimo do banco por muitos anos, mas valia a pena. O marido estava meio doente, e combinaram de já deixar, por escrito, a casa como herança para a filha única deles.


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Por mais de trinta anos, Eurídice e o marido foram muito felizes na casinha de paredes cor de rosa e muitas plantas nas pequenas janelas pintadas de azul. Havia gatos dos vizinhos, passarinhos ao redor e sapos verdes que pulavam da caixa d’água.

Eles namoravam na varanda e tinham uma conversa preferida: como era boa aquela sensação de serem felizes juntos. Simplesmente, juntos, mesmo com as dificuldades da vida. Como as preocupações com a falta de dinheiro da família da filha única, que agora já tinha uma filha única.

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Numa manhã de primavera, o marido de Eurídice não amanheceu mais. Ela já esperava por aquele dia, mas, mesmo assim, se deixou chorar muito, o tanto que o coração poderia querer.

Ainda ao lado daquele corpo que era também tão dela, Eurídice prometeu a ele que faria tudo para continuar a ser feliz, como se estivessem para sempre juntos.

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Depois da missa de 30º dia, a família da filha veio morar com ela. Rapidamente, a rotina da casa mudou muito. Ela cedeu o quarto de casal para a filha e passou a dividir o outro menor com a neta única. O marido da filha começou a fazer umas reformas na casa, tirando o jardim para abrir uma garagem. Forrou o teto e espantou os gatos.

Ele assistia à TV deitado no único sofá da sala, com o som muito alto e a cerveja do lado. Às vezes, Eurídice captava o olhar da filha observando o marido com uma ponta de repulsa. Aquela percepção afiada, que só as mães que amam os filhos conseguem ter.

No domingo, os amigos do marido vinham para o churrasco que ia até à noite, com muito pagode, deixando restos de tudo por todos os lados. Eurídice acabava ajudando a arrumar a casa ainda bem cedo na segunda, antes de clarear e de a filha sair para trabalhar.

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Uma noite, ouviu o marido gritando alto com a filha no quarto. Depois, escutou dois barulhos secos. Torceu para que não fossem nas costas, pois poderiam aleijar.

No outro dia, Eurídice se mudou para o quartinho dos fundos, depois do quintal, onde ficava a mesa de passar roupa e havia uma cama velha, mas aconchegante. Queria ficar longe de tudo. À noite, lembrava-se da promessa que fizera ao marido e ganhava forças para o dia seguinte.

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Um dia, o marido da filha chegou com uns papéis em casa. Depois do jantar, pegou a pasta, entregou para a esposa e disse:

-- Tá tudo aí. Conversa com ela depois. 

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No dia, seguinte, a filha foi no quartinho da mãe e explicou tudo. O marido queria vender a casa, para dar entrada num apartamento em um bairro melhor. Era menor, porém, mais novo e longe da violência daquela região. Estava tudo certinho, era só ela assinar.

Eurídice não teve reação. Só procurou, com os olhinhos finos, os olhos da filha diante dela – mas não os encontrou.

Passou parte da noite olhando para os papéis em cima da mesinha. Dormiu mal, mas sonhou muito. Sonhou com o marido assoviando para os passarinhos; sonhou com o susto engraçado que tomou no dia em que ele caiu da escada enquanto pintava a parede da frente.

Sonhou com a vergonha gostosa que teve no dia que eles resolveram jantar nus, morrendo de rir e de medo de alguém espreitar pela janela. Como foi bom segurar o rosto dele com as duas mãos, beijá-lo com força e senti-lo tão intensamente naquela noite!

Sonhou com eles sonhando acordados na varanda, fazendo força juntos para puxar para dentro de casa a corda pesada da felicidade. Por fim, lembrou-se da manhã de sol em que ele deixara de sonhar para sempre.

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Eurídice acordou cedo no dia seguinte, mas ficou no seu canto, esperando o marido da filha sair para trabalhar. Tinha pensado muito. Estava cansada e não tinha como sobreviver sem a filha e a família da filha. Muito menos morar sozinha. E, afinal, a casa seria mesmo de herança. Estaria apenas adiantando as coisas. Tinha a sensação de que o tal o apartamento seria apertado, mas, o que fazer, tão frágil, às vésperas dos 90 anos...?

Pela manhã, deixou os papéis assinados na mesa da sala.

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No dia da mudança, Eurídice arrumou suas coisas em duas malas. Uma caixa com papéis, fotos e recordações completava sua bagagem. Era muito pouco, pensou, para quem viveu 50 anos ali. Mas era, realmente, tudo que tinha, além de pensamentos e lembranças.

No início da tarde, o motorista do caminhão de mudança ligou o motor. Os ajudantes fecharam o baú. Estava tudo lá dentro.

Ou quase tudo.

Só sobraram as duas malas e a caixa de Eurídice, que foram colocadas pelo marido da filha no porta-malas do carro da família, onde cabiam com folga.

Quando o carro deu a partida, Eurídice, do banco de trás, não resistiu e olhou de soslaio para a varanda da casa. Tomou um susto. Teve a clara sensação de que alguém estava ali, inerte e de pé, com o corpo vencido pelo tempo, observando-a partir.

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Depois de passar por muitas ruas e avenidas, o carro do marido da filha parou diante de uma casa branca com murinho na frente. Eurídice olhou em volta. Não havia prédio algum ali.

Sem dizer nada, o marido da filha saiu do carro, abriu o porta-malas, tirou os pertences de Eurídice e levou até a varanda casa, onde uma mulher de uniforme o aguardava.

A filha abriu a porta de trás do carro e continuava sem conseguir olhar para a mãe. Apenas falou, pegando-a pelo braço:

-- Mãe, a senhora vai ficar aqui hoje. Depois a gente conversa... 

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De repente, Eurídice compreendeu tudo. Tudo mesmo.

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Estava de pé diante daquela mulher de uniforme, que lhe oferecia um sorriso bem treinado para aqueles momentos. Suas pernas frágeis fraquejaram e seu corpo tremia por dentro, prestes a desabar. Seus pequenos olhos tão vívidos se umedeceram rapidamente.

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Eurídice ouviu o carro partir. A mulher bem determinada convidou-a para conhecer a casa. Falou que ela iria dividir o quarto com outras duas idosas, muito simpáticas e brincalhonas.

 E que ela teria tudo ali. Roupa lavada, café da manhã, almoço e jantar. Duas frutas por dia. Revistas, telefone no horário comercial e novela na TV. Às dez da noite, todas as luzes eram apagadas. Mas haveria visitas de crianças do grupo escolar aos domingos. Além de festa de Natal e bolo com parabéns no aniversário. Tudo repleto de amor e carinho.

Por fim, a mulher perguntou:

-- A senhora gostaria de ter mais alguma coisa?

Eurídice nunca imaginava que tudo poderia ser tão rápido. E como as coisas também se encaixavam com toda a lógica da vida.

Pela primeira vez, sentiu como se não tivesse mais nada por dentro. Só a carcaça, quebradiça e terminal.

Como as paredes em ruínas de uma casa abandonada.

Apenas falou:

-- Sim... gostaria de ter... saudades do futuro.

domingo, 4 de outubro de 2015

Só por uma vez...

Dayane foi acordada, antes das sete, por uma ponta de sol que trespassava a janela vermelha, de madeira carcomida, do quarto que há um mês ocupava no hotel. Sentia um gosto amargo na boca, de resto de Bacardi ainda da noite anterior. Seu rosto denunciava sua juventude sofrida.

Desceu para tomar café com leite e pão com manteiga no bar da esquina da Avenida Santos Dumont, que funcionava 24 horas e tinha suas regras, como a do cartaz mal escrito na parede: “Proibido vender bebida alcóolica antes das nove”.

Ela ficou olhando para o nada enquanto o café esfriava um pouco. Estava com o corpo dolorido do dia anterior. Foram mais de oito homens, só depois das cinco da tarde, quando chegou ao hotel. Passara o dia pesquisando os preços dos cursos de enfermagem em várias faculdades da cidade.

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Rodolfo também foi acordado por uma fresta de luz, que entrava pela cortina da janela do ônibus. Quando despertou de vez, já estava na rodoviária, no centro de BH. Tinha o hálito forte de cigarro de palha e cachaça ruim, que fumara e bebera nas três paradas desde que saíra de Almenara. A barba estava mal feita, os dentes ruins e os cabelos, esbranquiçados.

Apesar da idade, ia procurar emprego na capital, mas não tinha pressa. Passou a noite, entre dormindo e acordado, pensando em procurar alguma mulher “bem torneada” perto da rodoviária.

Depois de descer do ônibus, só com a mochila de mão, foi andando por uma avenida grande, com duas pistas largas só para ônibus. Parou num bar de esquina para tomar café com pão. O dinheiro estava contado, mas tinha de dar para pagar a mulher.

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Muita gente passava apressada diante do bar. Alguns tomavam um café rápido e caminhavam, decididos, para lugar qualquer. Mulheres dos hotéis da região já estavam procurando um cliente qualquer. Camelôs vendiam de tudo por todo lado. O dono do bar não via ninguém, só tomava conta do dinheiro que entrava. Vidas seguiam seus destinos, perdidas na confusão do centro da cidade.

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Rodolfo viu a moça de cabelo negro e vistoso quase ao seu lado, no balcão. Percorreu-lhe o corpo com o olhar viciado de sempre. Ela retribuiu-lhe a atenção, sem disfarçar desejo forçado. Ele lhe mandou um meio sorriso.

Dayane sentiu que o cliente era dela. Ainda era cedo para começar a trabalhar, mas estava juntando dinheiro para tentar a faculdade. Sempre antes de dormir, finalmente a sós, imaginava-se trabalhando de branco à noite, em um hospital de gente bacana.

Sem perder tempo, ela se aproximou dele, no balcão ainda vazio, oferecendo-lhe o sorriso comercial. De leve, roçou o corpo nas pernas daquele homem, que perguntou sem rodeios:

-- Quanto é o programa, mulhé? 

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Atravessaram a rua em direção ao hotel, que ficava ao lado de um cine privê, onde homens e mulheres se misturavam ao longo do dia, todos os dias, num enredo difuso entre realidade e fantasia.

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No começo, Dayane achava muito estranho ser usada por tantos homens em um mesmo dia. Mas o estranhamento foi virando rotina, assim como tudo o que eles faziam ou pediam que ela fizesse.

No quarto, o homem acendeu um cigarro e foi tirando a roupa, enquanto ela fazia o mesmo. A intimidade inevitável surgia do nada. Ele a tomou pela cintura, sentindo sua pele lisa em seu corpo rude e castigado pelo sol. Passou por ela suas mãos pouco afeitas a carinhos. Estava afoito e disse, com a voz rouca de nicotina:

-- Quero te sentir nos meus braços, mulhé. Mesmo que seja só por uma vez. 

Havia algo comum entre eles, além do cheiro de resto de álcool. Horas atrás, poderiam parecer velhos conhecidos, perdidos numa noite suja, cada um em seu caminho.

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Ela não tinha uma casa e muito menos um lar. Na única cama do único quarto de sua vida, deixou aquele homem vindo do nada saciar-se enquanto quis. Depois de tudo, ele acendeu outro cigarro, deitado ao lado dela.

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Foi quando, de repente, ela viu.

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E sua alma estremeceu. Ao olhar para o pé direito daquele homem, viu que ele não tinha o dedão. No lugar, apenas uma cicatriz grosseira e suja. Rodolfo percebeu o que ela olhava e disse, distraído:

-- Não se assuste com o meu pé. É estranho, mas já me acostumei. Perdi o dedão com uma machadada errada que dei na roça. Faz muito tempo, sabe... 

Dayane esquecera o corpo doído e foi se assustando por dentro e por fora. Queria cobrir a nudez e não olhar para aquele homem que continuava falando:

-- Não deu para salvar o dedo. Na hora, estava só eu e minha filhinha de quatro anos, numa roça pra lá de Almenara. Coitada, ela não tinha como buscar socorro... 

Dayane sentia verdadeiro pavor dentro daquele quarto cada vez menor e mais apertado. Ainda teve força para perguntar:

-- E... onde está... sua filha...?? 

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Fora do hotel, o sol esquentava o asfalto e as calçadas, por onde passava tanta gente despossuída de destino.

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A pergunta de Dayane fez Rodolfo olhar fundo para o branco do teto mal pintado. Ele tragou forte o cigarro e falou:

-- Num sei de minha filhinha, não. Ela saiu de casa e sumiu no mundo com a mãe, há muito tempo. 

Dayane tentava segurar os cabelos com as mãos, que tremiam, descontroladas. Foi saindo do quarto devagar para não ser vista. Mas ainda ouviu aquele homem já não estranho dizendo:

-- Num sei mesmo o paradeiro da minha filha... mas, vou te falar, mulhé... daria tudo para poder abraçá-la de novo. Nem que fosse só por uma vez! 

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Já no corredor, indo para lugar algum, Dayane passou pela vizinha de quarto, que lhe perguntou brincando:

-- Cliente novo no pedaço!? 

-- Sim... quer dizer... não!, disse Dayane, sem conseguir mais conter as lágrimas, que nunca tinham escorrido naquele maldito hotel.

Mal ouvindo a própria voz, ainda falou, mais para si do que para a outra:

 -- Ele... um dia... 

-- Um dia... ele já foi meu pai.