Com raríssimas exceções, a imprensa brasileira sempre foi feita sob a ótica das pessoas de maior renda. Este blog tem como objetivo retratar a vida daqueles que, em geral, não saem nos jornais. As histórias aqui descritas são lastreadas na realidade e, infelizmente, a maioria delas não tem final feliz. Mas são carregadas de esperança. Como tem sido a realidade dos mais de 35 milhões de brasileiros que, nos últimos anos, estão deixando de ser tão excluídos como o foram no passado no nosso país.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Zip! Zip!

A cada anoitecer de sábado, Dalmir não cabia em si de alegria. Era a hora de fazer a contabilidade da semana de sua barbearia. Há seis meses, ele deixou de trabalhar em um salão maior e abriu seu próprio negócio, junto com os dois filhos, aos quais ensinara o ofício.

Estava instalado em uma loja de um pequeno shopping, muito bem localizado em um bairro de classe média alta da zona sul de Belo Horizonte. O número de clientes era crescente, e já dava para ter certeza de que o pequeno empreendimento ia vingar. Aluguéis pagos sem atraso, financiamento das três cadeiras em dia e dinheiro garantido para o sustento da família.

A clientela era predominantemente formada por homens, mas havia também muitas crianças, levadas por babás, mães e avós.

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Os jornais e revistas espalhados no salão traziam todo tipo de notícia. Num sábado pela manhã, um cliente de cabelo e bigode lia uma reportagem sobre o filme “Que horas ela volta”, da diretora Anna Muylaert, indicado pelo Brasil para concorrer ao Oscar de filme estrangeiro.

-- Você viu esse filme, Dalmir? Indagou o cliente.

-- Vi não, mas sei que é a história de uma doméstica que mora na casa da patroa rica, não é?, respondeu.

-- Sim e não. Na verdade, é muito mais do que isso. O filme merece o prêmio que já ganhou no Festival de Berlim. Ele fala das mudanças na sociedade brasileira nos últimos anos, explicou o cliente.

-- Eu não tenho dúvida de que tem muita coisa mudando, especialmente para os mais pobres.

-- Inclusive as oportunidades. No filme, por exemplo, a filha da empregada passa no vestibular da USP; e o filho da madame não! Mas ele retrata outras coisas bem brasileiras, que mostram essa nova realidade do país. E, nesses tempos de legalização da profissão de doméstica, o filme traz muitas situações para se pensar.

-- Eu sei como é...

-- Não vou te contar mais nada, para você assistir. Mas presta atenção numa cena: quando a Val, a empregada, finalmente entra na piscina da casa da patroa. Tem muita coisa interessante ali, disse o cliente. E indagou:

-- Dalmir, e o que você acha disso tudo que está acontecendo no Brasil?

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Nesse instante, o barbeiro interrompeu os movimentos de corte, os braços ainda erguidos. Uma mão segurava a tesoura, e a outra, o pente. Deixou o olhar se perder para fora do salão, na galeria do shopping, onde muita gente circulava naquela bela manhã de sábado.

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Uma dona de casa puxava um carrinho de feira e tinha 12 mil na poupança da Caixa; um ajudante de pizzaria levava sacos pretos de lixo para a calçada, com três meses de atraso na pensão do filho, somando mais de 1.500; um motorista de executivo passava o cartão eletrônico da empresa, do qual ele tinha a senha, onde havia 2 milhões aplicados em renda fixa; uma estudante ia para a aula de inglês, feliz com o depósito de 5 mil que a avó fizera em sua conta corrente; uma empregada doméstica voltava da padaria, satisfeita por já ter 500 na poupança e não usar mais os 600 do cheque especial. 

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O pensamento de Dalmir foi longe e voltou, enquanto a cena do corte de cabelo parecia congelada por instantes.

Ele disse então, pausadamente, sem pressa, com o serviço em andamento:

-- Olha, eu não vi o filme, mas sei o que você quer dizer, pois escuto muita história aqui. E vou te contar uma coisa. Aqui nesse salão, eu tenho cortado cabelo de muita gente. De todos os tipos sociais. Vem também muita madame rica, trazendo seus filhos ou netos. E estou vendo como muitas delas estão se sentindo ... como posso dizer... elas andam assim, meio revoltadas.

-- Como assim?

-- É o seguinte. Vou tentar resumir. No meio da conversa, o assunto sempre aparece: como está difícil manter e, mais ainda, conseguir novas babás para tomar conta dos filhos.

 -- Ficou mais complicado, com a nova lei...?

-- Sim, mas a questão não é bem essa. As madames estão mantendo as babás... mas elas reclamam do seguinte: do jeito que as coisas estão indo, as filhas das babás não vão mais ser as babás dos filhos dos seus filhos, como sempre acontecia. Entende? Esse é o problema para elas.

-- E essa revolta vem daí?

-- Esse é o ponto! O problema não é faltar babá. Mas acontece que a filha da babá, agora, está indo para a faculdade... ela não quer mais ser babá como a mãe...

 -- Igualzinho ao filme...

-- Exatamente. Por isso estou te contando isso.

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Do lado de fora do salão, continuava passando gente, cada um carregando seu destino. Menino com mesada de 200, pedreiro com salário de 1.700. Dona de loja com crédito de 30 mil no Banco do Brasil. Porteiro de shopping devendo 800 para agiota. Dono de Porsche com 5 milhões aplicados no Tesouro Direto. 

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Dalmir prosseguia sua narrativa, tentando não terminar o corte do cliente:

-- Elas rodeiam, rodeiam e acabam falando mal dessa situação, colocando a culpa no governo. E falam mesmo: ‘Do jeito que está indo, quem vai tomar conta do meu neto, daqui a uns anos? Esse povo agora quer até fazer faculdade!’ E citam essa “quantidade de cursos” que está aparecendo com esses “financiamentos com dinheiro público”.

-- Mas é só pagar mais que novas babás vão aparecer, será que não?, indaga o cliente.

-- Sei lá. Não posso ter certeza. O que sei mesmo é essa coisa que estou te falando, da revolta.

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Dalmir parou novamente para pensar, esticou o olhar bem longe e esboçou um meio sorriso com o que vinha na lembrança.

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Lá fora, na avenida, passou um ônibus conduzido por um motorista novo na linha, que tinha deixado de ser manobrista de garagem da empresa e passou a ganhar 2.200. Com o acerto, ia receber 5 mil e pagar dívidas de 3 mil. Ia sobrar 2 mil para ir passar férias na praia com a família. 

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O barbeiro continuou com o meio sorriso na ponta dos lábios. E foi dizendo, lentamente, como que fazendo suspense de final de filme...

-- Mas tem ainda uma... uma não, duas coisas que estão incomodando mais ainda essas donas... uma coisa mais séria e um detalhe que piora tudo!

-- A primeira coisa...

-- É o seguinte: as babás, além de não prepararem mais as filhas para serem babás, estão vindo trabalhar de carro! E muitas delas têm carro igual ao do filho da patroa...!

-- É o Brasil mudando, Dalmir, apesar da crise... e qual é o detalhe...?

 Dalmir foi para o meio do salão, como um ator ensaiando uma cena. Largou a tesoura, e fingiu segurar um pequeno objeto com a mão direita, entre o dedão e o indicador. Fez um movimento com os dedos, como se apertasse um pequeno botão em direção de uma suposta porta de carro.

-- Pode parecer bobagem, mas o que está pegando também, eu percebi nos comentários de três delas, é isso...

E completou, emitindo um som entre os lábios:

- Zip! Zip!

-- E isso é o que, cara?

-- As madames falam: ‘Sabe, a porta do carro da minha empregada agora abre que nem a do meu... com aquele controle eletrônico, que faz... Zip! Zip!’.

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